Regresso ao Reino da Piolheira Invejosa

Texto:       Richard Lencastre

Layout:    Jorge Manuel Seabra de Melo

Pesquisa:  Sandra de Oliveira Oneto

Fotos de rua - Marcos de correio - Por toda a cidade - FuncionamMarcos do CorreioFOTO: Kristen Ivanenko – I.I.J – International Independent Journalists

                            Completamente desconhecidos pelas juventudes nascidas depois da Revolta Militar do 25 de Abril continuam vivos e de boa saúde em terras de Sua Majestade Britânica assegurando que as cartas chegam aos destinatários com a pontualidade dum relógio suíço. Sem falhas nem greves como deve trabalhar um serviço público que se preza e tem respeito pelo povo que, pagando os seus impostos, tem direito a um serviço de primeira qualidade.

Se os jovens de hoje não sabem porque nunca viram um marco do Correio já as gerações mais antigas ainda recordam com uma pontinha de saudade a canção de grande sucesso com o mesmo nome com música do maestro Frederico de Brito e versos de Alberto Ribeiro que a cantou com a voz aveludada que tinha e as Rádios passavam para deleite dos milhares de ouvintes nas longas décadas da ditadura em que os portugueses ainda nem sabiam o que era Televisão.

Como caramelo para adoçar a boca da “peste grisalha” (como o deputado Carlos Peixoto se referiu aos idosos reformados (e talvez aos seus pais…) abaixo transcrevo os inspirados versos como homenagem à “peste grisalha” que trabalhou a vida inteira para poder gozar duma reforma que conquistou a pulso com os descontos que década a década depositou nos cofres do Estado. Versos duma cativante simplicidade retratam o mundo de sentimentos que giravam em volta das centenas de Marcos do Correio espalhados de Norte a Sul do nosso tão maltratado país. Versos felizmente recuperados pela tenacidade e engenho do fadista José Fernandes Castro a quem a Tribuna, com toda a justiça, presta uma merecida e sincera homenagem:

                                               Minha rua sossegada
                                               Tem à beira do passeio
                                               A coisa mais engraçada
                                               Que é o marco do correio

                                               Marco do correio

                                               De portinha ao centro
                                               Não sabes, eu creio

                                               No que tens lá dentro
Quantas raivas e desejos

                                               Mil respostas e perguntas
                                               Quantas saudades e beijos

                                               E quantas lágrimas juntas

                                               Marco do correio

                                               Deixa-me espreitar
                                               Deixa que eu não leio

                                               Nem vou divulgar

                                               Vá lá, não fiques zangado

                                               Deixa-me ver, por favor
                                               A carta que tens ao lado

                                               A carta do meu amor

(FONTE: www.fadosdofado.blogspot.com)

                    Marcos do Correio os encontrei em Cambridge iguais, no formato e na cor, aos que observei na Escócia, em Newcastle e em Brighton numa viagem de estudo no ano passado. Atrasados mentais devem ser os tontos dos ingleses que insistem em manter este tipo de recolher a correspondência. Inteligentes e práfrentex são os portugueses obrigados a perder tempo e paciência a calcorrear por vezes largas distâncias para irem até uma estação dos nossos Correio que, depois da exagerada fúria das privatizações, oferecem um serviço cada dia pior do que o outro. Como costuma dizer um amigo meu (um “peste grisalha” como eu offcourse yes…) “é o país que temos, é o povo que somos”…

Fotos de rua - 23 e Maio de 2019 - Ciclista na Magdalene StreetCabines Telefónicas – FOTO: Kristen Ivanenko – I.I.J – International Independent Journalists

                            Lá está um dinossauro encarnado que os ingleses continuam a acarinhar: uma cabine telefónica!!! Meto conversa com um “peste grisalha” que habita em Cambridge e com a maior candura do Mundo pergunto se faz sentido manterem cabines telefónicas espalhadas pela cidade quando a maioria da população deve possuir um telemóvel. Pergunta-me donde sou e satisfazendo a natural curiosidade confesso  ser português. “Wonderful country” (“País maravilhoso”) dispara com um sorriso de orelha a orelha. Resume a sua exclamação com uma única palavra que diz tudo: “Algarve”. E desdobina recordações: o peixe fresco grelhado num restaurante da praia, as mulheres lindas e simpáticas, os vinhos que matam a sede e as preocupações do dia a dia, a vida barata e a segurança de não haver perigo de algum atentado terrorista”.

Agradeço os elogios e acrescento que Portugal não é só o Algarve é um universo prenhe de agradáveis surpresas que precisa descobrir nas próximas férias. E dou-lhe dicas: Sintra e o seu Castelo dos Mouros, Aveiro e as rias para passear num típico barco, o Porto cidade de austeros granitos e o verdejante Minho magnífico e generoso com um vinho também verde que nunca encontrará igual em qualquer outro país do nosso planeta.

Mas rebobinei a conversa e insisti na pergunta inicial. Como bom inglês que é, fleugmático e paciente com o turista ignorante, elucidou: nem toda a gente tem telemóvel. Uma parte da população residente, em especial as faixas de mais idade, não se adapta à novas tecnologias e necessita mesmo das velhinhas cabines para comunicar com familiares ou amigos. E outra coisa que convém não esquecer: Cambridge não é o Algarve, no inverno temos frios de nos gelarem os ossos e felizes ficamos se não acordarmos com neve nas ruas. As cabinas são um refúgio e, muitas vezes, são um abrigo para quem usa o telemóvel e não quere ficar encharcado. O investimento está feito, a manutenção não é nenhuma fortuna e, melhor do que tudo, é uma tradição que nos lembra os nossos pais e avós porque na infância, um pouco apertados, também as usámos junto com os familiares que as precisaram usar quando as generosas chuvas nos ajudavam para, no Verão, termos os relvados que são a inveja de quem nos visita. E como bom Professor de Filosofia reformado colocou um ponto final na charla que mantivemos: “nada acontece por acaso, há sempre uma razão para todas as coisas…”.

Fotos de rua - Portugal Street

Fotos de rua - Portugal Street - Esquina floridaPortugal Street – Rua bastante longa que liga a principal Magdalene Street à paralela que se vê à direita – FOTO: Kristen Ivanenko – I.I.J – International Independent Journalists

                             Parte mesmo do centro da Galáxia Ardente atravessando a zona central de Cambridge. Não sei a extensão, mas apenas que suei a estopinhas para ir ver a roseira mais célebre da cidade que obriga a uma anual intervenção dos bombeiros para com uma escada de longo curso um jardineiro a poder podar e cortar algum ramo porventura seco. Para azar do escriba ao contrário da previsão meteorológica do télélé, que dava chuva para nos arreliar o dia, foi dum calor de assar passarinhos no alcatrão do caminho tendo suado as estopinhas para regressar ao ponto de partida e poder arribar a um pub para matar a sede com uma cerveja…morna…

IMG_3476Pubs – O pobre do sequioso e desidratado autor com a garganta mais seca que as areias do Deserto de Gobi esbracejando mentalmente contra a arreliante tradição dos horários de charada e pelo ambiente geralmente sombrio que obriga espreitar para percebermos se o Pub estará em funcionamento ou fechado para obras – FOTO: Kristen Ivanenko – I.I.J – International Independent Journalists

                            É de arrancar os (raros) cabelos de desespero quando por volta das oito da noite os restaurantes do centro já exibem o aviso de “CLOSE” ou seja que já não servem bifes para ninguém e o melhor que há a fazer (para quem sabe) é continuar na Rota das Descobertas e depois de meia hora de caminho suspirar de satisfação e alívio ao darmos de caras com um restaurante grego profusamente iluminado que exibe à entrada um grande cartaz com uma frase espectacular: “Estamos abertos das onze da manhã até às onze da noite”. Allah é grande e Zeus não lhe fica atrás…

O mais engraçado é que a rapariga que nos atende, uma radiosa jovem russa loira de pele mais branca que a neve e uns olhos verde mar que nos atravessam quando fazemos e pagarmos adiantadamente o pedido (com a alegre informação que tínhamos dez por cento de desconto porque a nossa acompanhante trazia uma camisola dum College) nos informa que o restaurante é no terceiro andar e ao passarmos junto da cozinha no rés-do-chão ouvimos falar espanhol entre os dois barulhentos cozinheiros que discutem algo que não percebemos lá muito bem. Cinco minutos depois de nos termos sentado doses pantagruélicas duma comida deliciosamente farta foram servidas, vorazmente comidas e convertidas as contas em libras para euros o jantar foi mais barato que num bom restaurante de Lisboa.

Trinity College - Coro célebre - Uma experiência interessante -01Coro do Trinity CollegeFolheto explicativo

                            Peregrino do Mundo com vergonha confesso que não vinha a Cambridg e desde o ano passado, cidade em que vivi nos finais da década cinquenta onde por um milagroso acaso do Destino conheci Bertrand Russel cujas ideias admirava e que, nas duas semanas que com ele privei, por completo mudou a minha maneira de pensar. Dum certo modo Cambridge é uma cidade-feiticeira.

Medieval é a quinta mais antiga universidade do Mundo, fundada em 1209. Oxford em 1096

Moderna com os impulsos intelectuais que génios como Russel lhe imprimiram e aceleraram as grandes mudanças no Pensamento do século XX.

Dinâmica por completamente integrada na Globalização que, agora e já, está a preparar gerações para o Mundo Novo que está em gestação (Inteligência Artificial, Internet das Coisas, Evolução do Ambientalismo, Aceleração nas Alterações das Estruturas Tradicionais da Religiosidade, Diferente Perspectivação dos Rumos da Neurociência, etc,etc) que permite a quem esteve ausente de 1958 até 2918 (sessenta anos) respirar num “Regresso aos Básicos” que, muito ao contrário de universidades academicamente estagnadas, definir Cambridge  Tradicionalmente Intemporal cultivando e mantendo tradições seculares de mãos dadas com um diferente “Admirável Mundo Novo” porque, como muitíssimo bem nos alertou Helio Gurovitz, “mais que Orwell, Huxley previu o nosso tempo”.

                            Experiência ao mesmo tempo extasiadora e única é religiosa e recolhidamente ouvir o Coro do Trinity College fundado por Henrique VIII em 1546 cantando “a Capella” Música Medieval num harmónico distribuir de sons que sentimental e mentalmente nos transportam para os séculos dez e onze oferecendo-nos uma paz interior que regenera o espírito tornando-nos humanamente melhores e diferentes.

Richard Lencastre conversando com Mr. Ian StevensDesigner, artesão, investigador – Ian StevensFOTO: Kristen Ivanenko – I.I.J – International Independent Journalists

                             Ian Stevens é um marco no meio industrial-artístico de Cambridge. No seu “laboratório” da Magdalene Street junto ao College do mesmo nome é hoje um dos últimos artesãos que domina tudo quanto se relaciona com as peles como matéria-prima para as suas criações. Com uma clientela selecionada entre a Alta Sociedade Inglesa (banqueiros, políticos de todos os quadrantes, milionários, professores universitários, grandes industriais, artistas do Show Bizz, etc) cria, desenha, coze, monta carteiras e dezenas de objectos duma qualidade e originalidade hoje rara por o número de quantos se dedicam a este ramo se contar pelos dedos de uma só mão. Ian Stevens satisfaz encomendas vindas de todas as partes do Mundo muito em especial dos Estado Unidos onde este artesanato, tal como os dinossauros, se extinguiu para sempre. Homem duma cultura vasta e bem estruturada é um conversador de mão cheia que nos deslumbra com as ideias que expõe duma forma irrepreensivelmente ordenada. Faz lembrar os artistas da Renascença Italiana que amam o trabalho e acarinham cada peça que criam como se fosse um filho. Ian Stevens é um must para quem para férias ou obrigações profissionais se desloque a Cambridge e, ainda que não compre nada, se deleitará com a exposição de objectos de grande beleza que os seus olhos poderão contemplar.

A quase centenária célebre Professora Elisabeth com uma jornalista americana neta dum antigo aluno que se deslocou propositadaa Cambridge para a visitar. FOTO Kristen KingsThe Great Old Lady FOTO: do autor

                            The Great Old Lady (A Grande Velha Senhora) é uma quase centenária figura que ensinou Ciência Política e Relações Internacionais tendo alunos que de distinguiram em vários ramos da sociedade britânica tanto na Política como no ramo empresarial. Vive num College onde recebe visitas de antigos alunos com quem, apesar da avançada idade, conversa e deslumbra pela lucidez das suas análises e actualizado conhecimento de tudo quanto acontece no Mundo desde as patetices de Trump até à complexidade das negociações do Brexit. No dia em que nos recebeu passeava a caminho de casa, gozando um confortante Sol e a companhia duma jovem de New York neta dum antigo aluno que lhe enviou um presente. É verdadeiramente notável como uma pessoa tão culta aborda os mais complexos temas com uma humildade que é um exemplo para quem com ela contacta. Só a Great Old Lady valeu a viagem a Cambridge.

Botanic Garden - Postal Explicativo - 02Botanic Garden FOTO: Kristen Ivanenko – I.I.J – International Independent Journalists

                            O Jardim Botânico da Universidade de Cambridge que muito para além da profusa beleza oferece aos visitantes poderem ver espécies de todos os continentes desde as plantas raras da Selva Amazónica até à Welwitschia Mirabilis uma estranhamente fascinante planta que só existe na secura das terras do Namibe em Angola. Lagos e repuxos transmitem uma sensação de frescura depois de sairmos de estufas onde temperaturas controladas permitem o desenvolvimento de flores de inigualável beleza. Com inúmeros painéis explicativos ao longo dos percursos uma visita ao Jardim Botânico de Cambridge (considerado um dos melhores do Mundo) é, excedendo a faceta lúdica uma lição porque face aos milhares de espécies que totalmente desconhecíamos a nossa ignorância reduziu-se um pouco porque para assimilarmos uma “fatia” maior de conhecimento talvez nem um ano bastasse.

Botanic Garden - 24 de Maio de 2019 - Cristina - 02Kristen Ivanenko – FOTO: do autor

                            Faltaríamos ao mais sagrado dos deveres de cortesia e gratidão se não publicamente agradecêssemos a gentileza da fotógrafa Kristen Ivanenko que com muita amizade e carinho nos recebeu no seu apartamento de Knightsbridge em Londres e gentil e desinteressadamente nos acompanhou na deslocação profissional a Cambridge para recolha de elementos para um livro que temos em preparação. Na foto acompanhada com a sua “idosa” camera Nikon com a qual já percorreu uma grande parte do Mundo por ser avessa a modernices digitais que não lhe reproduzem os meios tons com a precisão que exige em todos os seus trabalhos. Por tudo muito grato estou.

Policia - www.sintranoticia.pt - Refª 201906092237PSP – Foto: www.sintranoticia.pt – Refª 20190609

                            Desgraça. Má hora. Triste sina… Na véspera do regresso uma queda estúpida provocou-me uma contusão num joelho que me dificultava o andar. Minha filha do meio que pela profissão é obrigada a andar de avião como nós, simples mortais, andamos de Metro logo no hotel em Londres telefonou para a British Airways e solicitou “Special Assistence” explicando a dificuldade motora e a minha avançada idade. Foram impecáveis. Mal chegámos ao aeroporto logo nos recebeu uma funcionária com uma cadeira de rodas que tratou de tudo quanto ao check-in e nos acomodou na zona do Duty Free onde se compra tudo isento de impostos. Como por um problema qualquer (é sempre técnico e nunca se fala em ameaça de Terrorismo) havia um atraso de cerca de duas horas decidimos jantar e depois ver as notícias da BBC onde graças ao Altíssimo não apareceu o Costa com as parlapatices do costume.

Em vez de chegarmos à meia-noite eram quase três da matina quando, sempre de cadeira de rodas, saímos do aeroporto da Portela para chamarmos a UBER para nos levar até Vale dos Lençóis. Um bagageiro educado e muito solícito, ao ver a minha filha a dedilhar no telemóvel, logo avisou: “por favor, minha senhora, não chame a UBER porque vamos ter aqui uma zaragata dos diabos com os taxistas a armarem confusão. E educadamente sugeriu: a senhora faria um grande favor se fossem até lá ao fundo na paragem dos autocarros que aí já não há chatices. Infelizmente houve. Eu cheio de sono, mais para lá do que para cá, já a cair da tripeça e a minha filha desejosa de chegar a casa para dormir porque no dia seguinte já tinha marcado duas reuniões no escritório. Quando menos esperávamos saiu da sombra da noite um guarda da PSP que com voz de quem manda neste mundo e no outro intimou: aqui não podem estacionar porque é uma paragem de autocarros. Estava escuro de breu e um ventinho desagradável fustigava-nos o rosto. Minha filha argumentou: senhor guarda já não passam autocarros, o meu pai teve um acidente e saiu do avião em cadeira e rodas pelo que acho desumano obrigar-nos a ir para mais longe com esta ventania que está. O agente da “Óturidade” ripostou: já lhe disse que aqui não podem ficar. E sorria com um certo ar trocista. Claro que não sabia com quem se estava a meter. Para a minha filha problemas desta ordem é música celestial para os ouvidos. Com uma voz serena apenas lhe disse: meu pai é jornalista e eu trabalho com advogados, vamos obedecer à sua intimação, mas amanhã bem cedo vou ao Comando-Geral da PSP expor como se trata um cidadão idoso que paga os seus impostos e habituado a ver em Inglaterra os polícias a ajudarem as pessoas de idade e não a dificultarem-lhes a vida.

O guarda tossiu. E com fanfarrónica voz de quem faz um grande favor declamou em tom grave “bem desta vez passa, podem ficar que eu tenho mais que fazer”. E desandou. Minha filha chamou a UBER que quatro minutos depois chegou. E enquanto esperámos desabafou resumindo a triste situação com poucas palavras: “Regressámos ao Reino da Piolheira Invejosa”…